segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Não disse que ela voltava?




Passados uns quatro meses do desaparecimento da Caravan, eu já estava quase conformado, mas ainda triste quando pensava no que poderia ter acontecido com ela. Esse pessoal de ferro-velho é tudo bandido sem coração, os desalmados esquartejam e vendem aos pedacinhos, que nem fazem com boi em supermercado.

Preferia pensar que ela ainda estava viva, me procurando. Sentia que nossos caminhos se cruzariam de novo. Mesmo que eu trocasse de CPF e ela mudasse de RENAVAM, iríamos nos reconhecer em uma esquina qualquer.

Em um sábado de manhã, tinha ido de moto com a Bia, comprar carne em um açougue mais barato na rua da praia, perto da estação das Barcas. Na chegada, procurando um lugar para deixar a moto, me apoiei na lateral de um carro. Olhando assim com o canto do olho direito, que não é o bom, reparei que era um carro branco, grande...

Meu coração disparou quando abri a viseira embaçada do capacete. Vi que ali, estacionada e mal disfarçada, estava minha velha amiga. A placa era diferente, de Duque de Caxias. Mas eu tinha certeza que era ela. Como um marido que já fez bodas de ouro, eu conhecia cada arranhão e amassado daquela lataria. 

Pedi logo pra Bia descer e ir atrás da polícia. Eu esperaria ali pra não perder mais o carro de vista. Fiquei ali de boca seca e barriga gelada, botando os neurônios pra funcionar, pensando em um plano rápido, infalível e seguro.
Pensei em esvaziar os pneus, mas na hora chegou um moleque cheio de sacolas de compras e começou a guardar tudo no porta-malas. Quando eu falei que queria conversar com o motorista, ele disse que o dono era um PM e foi correndo no mercado chamar o sujeito.

No banco de trás tinha uma velha gorda com cara de cozinheira de história de Joãozinho e Maria. No porta-malas umas panelas enormes de cozinhar bicho grande. Eu pensei nervoso, tenho que ficar esperto, senão viro miúdo na mão dessa velha.

Daí a pouco volta o moleque com um sujeito barrigudo, de bigode, carregando uns pacotes de carne sangrenta e um volume debaixo da camisa que parecia ser uma arma. Parecia não, era um revólver.

Me aproximei tranqüilo, que na hora do perigo gente sem noção arranja coragem. Dei bom dia e perguntei logo onde ele tinha comprado o carro. Ele disse que tinha sido em uma agência lá no Alcântara. Eu disse que infelizmente ele tinha comprado um carro roubado e que minha esposa tinha ido ali chamar a polícia e já estava voltando.

E fui provando que sabia o que estava dizendo: mostrei um parafuso de borboleta, bem diferente do original, que eu tinha instalado embaixo do banco do carona, coisa que deixou o bigodudo convencido que eu era mesmo o dono do carro.

Começou a juntar curioso, já tinha um monte de desocupado levantando o pescoço pra ver que hora eu ia levar o tiro. Mas como tinha muita gente ali ele sugeriu que eu entrasse no carro, que me levaria lá na tal agência. Eu concordei, vamos lá sim, mas eu vou aqui. Pulei na moto e me arranquei pra longe uns cem metros. Por coincidência o meu amigo Mandril, que é campeão de tiro, tinha me dito no dia anterior que a cinqüenta metros ninguém acerta nada com revólver, só na sorte.

Fiquei de longe acelerando a moto e fazendo sinal que tinha sujado pra ele. Ele até tentou arrancar com o carro, mas do mesmo jeito que eu reconheci a Caravan, ela também viu que era eu e engasgou de não andar mais nem um metro.

O jeito foi o bando desistir e começar a tirar as coisas do carro. De longe eu vi o Bigode, a velha e o garoto saírem rapidinho em fila indiana carregando aquela tranqueira de sacolas de compras e panelas. Reparei que a velha mancava, deu até um pouco de pena, mas quem mandou ela andar com bandido?

Fiquei de longe, moto ligada, vigiando se o cara voltava. Passou um tempão e nada. Nem ele, nem a Bia com a polícia.

Nisso, atraído pelo ronco do motor, chega um mendigo e me pede um dinheiro. Eu disse pra ele, vá ali naquele carro branco e tire os cabos de vela que eu lhe dou trinta cruzeiros. Antes que alguém me chame de nome feio, explico que contei a situação pra ele, que o sujeito do bigode podia ser polícia, que estava armado, que podia estar por lá ainda. Em suma, que ele podia morrer de bala.
 Ele pensou nos trinta, calculou quantas doses de caninha da roça, tomou coragem e foi.
Voltou com os quatro cabos e me entregou. Aí que foi o chato, meti a mão no bolso e cadê? Quem anda sempre com dinheiro é a Bia e ela, eu já disse, tinha sumido. Perguntei se ele aceitava cheque. Ele ficou puto, mas disse que aceitava. Perguntei se ele tinha uma caneta.

Com os cabos na mão, parti pra delegacia e relatei o ocorrido. Os policiais disseram que se eu quisesse teria que levar o carro lá, que eles estavam sem viatura e não iriam buscar. Falei, se o problema é transporte eu levo um na garupa da moto e eles olharam pra minha cara de um jeito que eu achei melhor ir saindo.

Voltei pra cena do crime, que àquela hora tinha ficado confusa. A Caravan no meio da rua com as portas abertas, o alerta ligado. A Bia finalmente tinha chegado com outras polícias que investigavam uma mancha vermelha no tapete do carro. Ela já ensaiava um choro de viúva, porque os astutos detetives diziam que o sangue da carne da compra da velha era meu.

Mas nem tudo foi tristeza. Quando fui ligar os cabos de vela, reparei que tinha herdado uma bateria novinha. Entrando no carro, dei de cara com um toca-fitas Roadstar auto-reverse instalado. Liguei o carro com a chave da moto e fui pra delegacia ouvindo uma fita pirata de música gospel que o Bigode, na pressa, tinha largado pra trás.

E pra tirar o carro da delegacia? Foi muito mais difícil do que tomar do ladrão. A perícia pra comprovar que o número de série estava adulterado demorou seis meses. Mais uns seis meses pra resolver os documentos e a remarcação de chassis. Demorou um ano para eu ter de volta minha Caravan, mas pela primeira vez, desde a década de oitenta, totalmente legalizada.

Na época meu pai estava a pé e eu resolvi agradar o velho: dei o carro de presente pra ele. Ele estava de namoro com uma viúva simpática lá de Barra Mansa e eu achei que iria gostar de levar a dona pra dar umas voltas no carrão. Andou uma semana com a Caravan, o suficiente pra não querer mais. Falou que era pra eu pegar de volta logo, que todo dia enguiçava e ele chegava sempre com a mão preta na casa da moça.

Então não sobrou alternativa. Vendi minha amiga por oitocentos cruzados, pagos à vista. Peguei a grana, fui direto pras Casas da Banha e gastei tudo em uma compra de mês. Comi tudo e não pensei mais no assunto.

Só fui me lembrar de novo da velha Caravan quando, um dia destes de engarrafamento, no MP3 com bluetooth da minha Mercedes, ouvi uma musiquinha da Rita Lee e do Moacyr Franco que dizia mais ou menos assim:


“Salsichão, arroz, feijão
Mulçumano e cristão
A Mercedes e o Fuscão
A patroa do patrão
Meu salário e meu tesão
Tudo vira bosta...”





10 comentários:

  1. Muito bom o segundo capítulo!Eu me lembrava do lance do encontro com sua querida caravan, mas o resto da história os anos apagaram.Nem sabia que vc a dera de presente pro pai...Mas me lembro muito com as dificuldades para legalizá-la...A narração está boa demais...Suas aventuras merecem sempre ser narradas...Agora... Otempo já passou e os perigos tambem...Mãe é bicho muito sem noção...Bjos meu filho e continue escrevendo...

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  2. Eu estava aqui ansioso pelo segundo capítulo.Siga o conselho de sua mãe, continue escrevendo.
    Abraços.

    PS: só não gostei de vc ter vendido a coitada

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  3. Mãe, o tempo passou, mas o perigo não. Só que o perigo hoje é escorregar no banheiro.

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  4. Jorginho, eu também não gostei de ter vendido. Até hoje eu procuro a danada pra comprar de volta.

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  5. Arriscar a vida por alguém, e depois vender por 800 denários. Só você mesmo, Cláudio! Hehehehe

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  6. Fábio, quem arriscou a vida foi o Bigode. Eu sei desviar de bala e minha tesoura voadora é fatal.

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  7. O que que a gente não faz por amor?Também fiquei triste com a venda da bichinha, mas tenho certeza, que onde quer que ela tenha terminado os seus dias, pereceu feliz por saber ter sido amada de verdade!!!Muito louco esse meu irmão, muito amado por Deus, porque essas estórias todas são verdadeiras...

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  8. Angela, gostei do pereceu. Espero que agora ela esteja estacionada à mão direita de Deus, junto do Batmóvel e do Williams do Aírton Senna.

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  9. E vc nem tinha carteira D!
    Moral da história:
    1)sempre instale um "parafuso de borboleta, bem diferente do original," bem embaixo de alguma coisa sem que ninguém saiba para que você possa provar que é seu.
    2)quando comprar alguma coisa roubada, instale imediatamente "parafuso de borboleta, bem diferente do original," bem embaixo de alguma coisa sem que ninguém saiba para que você possa provar que é seu. Será o borboleta do dono contra o seu! pelo menos vc pode conquistar a confiança de alguns passantes pra dar tempo de fugir porque como vc viu a polícia não vai chegar a tempo mesmo.

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  10. Isso Fernando, fica aí dando idéia... Agora vou ter que contar o caso da carteira D.

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