quarta-feira, 29 de junho de 2011

Olho por olho, disco por dente


Hoje é só baixar mp3, botar no pendrive e sair com a coleção inteira dos Stones no bolso, mas em 1972 a vida era dura pra quem gostava de rock em Santa Rita do Sapucaí.

Pode parecer mentira, mas a internet ainda não existia. Para ouvir música tinha que comprar disco de vinil, gravar fita cassete ou ouvir rádio. Era impossível achar um disco que prestasse na lojinha do seu Waldomiro e o único programa de rádio que tocava rock era na hora da aula.
  
O jeito era ir juntando as mesadas e partir em expedição pro Rio de Janeiro, tentar a sorte na Billboard ou na Modern Sound. Ficávamos babando, percorrendo as pilhas dos vinis importados, olhando os encartes bonitos e pedindo para ouvir algumas faixas. Passávamos o dia inteiro dentro das duas lojas e no fim saíamos com as músicas bem gravadas na memória. Às vezes alguém mais ousado levava um disco sem pagar, não sei como, a gente era magrinho, um LP era grande pra ser escondido.

E assim, enquanto o rock dos anos setenta brotava como uma cachoeira, nossas coleções cresciam como uma goteira, dois em dois disquinhos por ano. Fazia minhas contas e via que naquele ritmo eu só teria vinte LPs depois das minhas bodas de prata. Alguma coisa tinha que ser feita pra acelerar minhas aquisições. 

E a coisa foi feita da forma que eu menos esperava, por causa de uma dor de dente. Escolhi um bom dentista, que examinou a situação e fez o orçamento. Tinha que tratar canal, ia ficar caro. Mandei o orçamento pra minha mãe e disse que era urgente. Urgente naquela época era diferente, o orçamento ia pelo correio e o dinheiro eu nem sei mais como vinha. Mas não tinha caixa rápido nem cartão de débito.

Enquanto o dinheiro do dentista não chegava, fui pesquisando e descobri que na cidade tinha um outro profissional mais em conta. Tinha sotaque de alemão, era prático, não tinha diploma e atendia em uma garagem, em uma cadeira de barbeiro. Mas o preço que ele cobrava era justo. Fiz as contas, com a diferença dos valores dos orçamentos dava pra comprar quase dez LPs de uma tacada só.

Nem pensei, quando o dinheiro chegou eu resolvi primeiro o mais importante: comprei logo os discos. Naquela época já tinha inflação, se demorasse com o dinheiro na mão dançava. Tive juízo, comprei só oito, tinha que sobrar uma graninha para um pacote de cigarros e para resolver o dente, que nem doía tanto mais.

Uma semana depois, com a dor de volta e cansado de ouvir os discos novos, fui consultar o prático que resolveu o problema rapidinho, da única forma que ele sabia. Deu um algodão com uma mistura de melhoral e LSD para eu cheirar e, com um alicate de borracheiro de caminhão, arrancou o meu dente. Na saída, sob o efeito da droga eu ainda pensei: -“Que bom negócio eu fiz, ainda tenho mais de trinta dentes pra trocar por disco!”

Fiquei de voltar ao consultório do prático para terminar o tratamento, tirar os pontos e fazer o pagamento. Mas logo depois, para minha sorte, alguém denunciou o sujeito, disseram que era um nazista foragido e quando eu voltei lá só tinha a garagem.

Hoje, quando tento mastigar uma coisa mais dura, vejo que foi overdose de burrice. Como Jimi Hendrix e Janis Joplin, meu molar superior direito foi um mártir, mais uma vítima daqueles anos perigosos do rock no vinil.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Ora que melhora


O barulho da cidade me incomoda muito. Sempre sonhei viver no meio do mato, sem vizinhos, ouvindo só passarinho e vento. Então, na primeira oportunidade que tive, contrariando a família, comprei um terreno na beirada mais isolada do mundo.

O lugar era perfeito, cercado de árvores, com uma reserva florestal atrás. Só um vizinho, um criador de orquídeas muito educado, aparecia por lá de mês em mês para ver as flores e bater um papo na cerca tomando uma cachacinha comigo.

Um dia ele se cansou da estrada ruim e pôs o sítio à venda. Com a saída dele as orquídeas ficaram abandonadas, se proliferaram sem controle e o local ficou infestado de perfume e beija-flores. Se melhorasse estragava mesmo.

Um dia soube que o sítio tinha sido vendido e fiquei torcendo pro comprador não aparecer tão cedo. Levou um bom tempo, mas apareceu. Era uma velha, a mãe dela centenária e um cachorro grande que parecia o Cérbero, aquele cão de três cabeças que tomava conta da porteira do inferno.

No primeiro contato que eu tive com a velha senti um calafrio. Tive a certeza dela ter causado algum embaraço pro demônio e ele ter botado o bando todo pra correr das profundezas.

E daí pra frente nunca mais tive sossego. Ela construiu a casa do cachorro o mais perto que podia da janela do meu quarto, gritava o dia inteiro com a mãe, a mãe berrava com o cachorro, o cachorro latia sem parar. Eu reclamava e ela dava gargalhada. Todo dia eu pensava em assassinato, mas na mão não ia dar. Eram duas velhas possuídas, tinha que ser coisa pensada, com arma boa, senão quem morria era eu.

Um dia, já desorientado e descrente de uma solução, pensei: -“Estaca no coração! Vou procurar um toco grosso e afiar bem afiadinho!” – E saí andando sem rumo pela reserva atrás de um galho no jeito. Fui me embrenhando cada vez mais pra dentro da mata, até que lá no fundo de um grotão, sentado em uma pedra, me aparece um apache velho, fumando um cachimbo esquisito.

Ele disse -“Rôu!” e me ofereceu o cachimbo. Eu aceitei e na terceira tragada eu já estava mais calmo que o índio. Perguntou o motivo de minha aflição e eu contei o caso todo. Quando descrevi a velha ele fez uma careta e me pediu o cachimbo de volta. Deu uma puxada forte, se virou e me aconselhou: -“Não reaja, não faça nada a não ser rezar. Entregue o problema nas mãos de Tupã.” E eu disse: -“Sim, mas me passe o cachimbo de volta”.

Na quinta tragada, olhei pro lado e cadê o apache? Como apareceu, sumiu, levando a pedra e o cachimbo. No lugar dele ficou só uma fogueirinha de gravetos, que eu apaguei pro fogo não lamber o mato.

E eu, que nunca tive fé, segui o conselho do pajé e a partir daquele dia comecei a rezar. O cachorro latia, eu rezava. A velha berrava, eu rezava mais.

Parece que funcionou, Tupã sentiu meu drama e me acudiu. Com o tempo, o cachorro foi ficando quieto, parando de latir, até que um dia sem mais nem menos parou de respirar.
A mãe da velha também foi dando tanta alteração que acabou internada em um asilo em São Gonçalo. 

E a velha, que era dura na queda, murchou. Foi ficando muda e um dia desses vi um médico sair da casa dela. Pela expressão do doutor conversando com o caseiro deduzi que não havia mais o que fazer.

Parei de rezar antes que a casa dela pegasse fogo. E apesar de não entender direito o que aquele apache estava fazendo em Maricá, me converti. Tupã é fiel.

domingo, 19 de junho de 2011

Um de nossos atendentes


- O protocolo de seu atendimento anterior, por favor?
- CP02
- Senhor Cláudio, Edifício Castelo, 6ºandar, ramal 811-3421...
- Sim.
- Nascido em Barra Mansa, engenheiro, míope desde criança, fumante, 94 Kg, hipertenso...
- Estou parando de fumar.
- Parando de fumar? O senhor está fumando um maço por dia, hollywood vermelho, dente amarelo, pele oleosa...
- Pele oleosa tem sua mãe!
- E a sua, dona Maria Helena, cinco irmãos. Vem de moto para o trabalho todo dia...devia parar,  a ponte está perigosa...
- Queria só saber quando eu vou ver a minha...
- Desculpe, senhor. Tenho antes que estar confirmando seus dados. Moto azul, Honda XLX-350, 99.000km, trocou óleo com 90.000, seu motor vai fundir, senhor. IPVA vencido...Xii, o CREA o senhor também não pagou. Humm, IPTU atrasado... Está com uma baita encrenca na Receita Federal, tem chegado atrasado demais no trabalho, sai cedo, está desmotivado...nossa, o senhor veio trabalhar com a mesma cueca que ontem?
- É, dormi fora essa noite. CTI.
- Senhor Cláudio, em que posso ajudar?

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Aliança renovada


Desci do Cidade do Aço lá pelas nove da noite, com entrevista de emprego marcada pra  manhã do dia seguinte na  prefeitura, não tinha nada que ficar na rua procurando encrenca.
Mas em vez de ir direto pra casa da minha vó e dormir, resolvi dar uma passadinha não sei em que bar, rapidinho.

Estavam os dois irmãos Gabrig encostados no balcão, ambos gigantes com quase dois metros, já meio bêbados.  Era muito amigo do mais velho, o Eduardo, que sempre foi da paz e não era de beber muito. O mais novo, o Oscarzinho, era meio nervoso no copo e tinha o agravante de eu ter perturbado ele um pouco na infância. Dez anos atrás eu tinha namorado uma irmã deles. Na ocasião eu devia ter uns dezoito, ele uns dez. Uma vez cheguei até a dar uns cascudos nele pra defender a moça.

Os dois me viram de longe e me intimaram pra chegar. Senti o perigo, coisa que infelizmente sempre me atraiu. Fui chegando, dei boa noite e logo o assunto engrenou. Eu já estava na quarta velho barreiro, nem me lembrava mais de prefeitura nenhuma. Não me lembrava também que uma vez eu tinha soltado os passarinhos que o Oscarzinho tinha prendido em umas armadilhas. Eu liberava o passarinho e deixava um papelzinho escrito, “vale um pardal”.

Eu não me lembrava, mas ele eu acho que sim.

Uma certa hora lá, já sem medo de nada, resolvi contar uma piada com cinto de castidade e precisava de um chaveiro pra fazer a encenação. O Oscarzinho tinha um chaveirão lotado, mas falou que só emprestava se eu deixasse minha aliança com ele de garantia. A piada era boa, mas perdia a graça sem o chaveiro. Então tirei minha aliança e entreguei.

Ele me passou o chaveiro e comecei a piada, meio cabreiro porque ele não estava nem prestando atenção no que eu falava. Ficava só olhando pra aliança e acho que lembrando dos vale-passarinho que encontrava nas arapucas desarmadas.

No fim da piada ninguém riu. O Oscarzinho botou minha aliança na boca, tomou um golão de cerveja, bochechou e engoliu. -"Caramba, Oscarzinho, minha aliança? O que que eu falo em casa agora?" Ele me olhou firme : - "Fica frio. Hoje é dia de pagamento."  

Tentei pegar o caminho de casa, mas ele tirou meu sapato e disse que eu só iria quando ele deixasse. Aí me deu uma valentia na hora: -"Esse feladamãe é grande mas não é dois. Já bati uma vez, bato outra  e é agora!" Levantei e parti pra dentro. Ele me segurou com uma mão só e disse rindo que era pra eu sentar e contar outra piada, que ele tinha gostado da primeira, das chavinhas. E me tomou o chaveiro.

Sem muito o que fazer, o jeito foi ir me acalmando. Achei que o Eduardo fosse me dar um apoio, mas na hora o sangue deve ter falado mais alto.No fundo eu sabia que o Oscar era um bom sujeito, não ia me matar. E que a aliança era de ouro, mais cedo ou mais tarde brilharia na outra ponta. 

Não vou aqui contar as maldades que sofri a noite inteira, no fim conseguir fugir sem sapato pra casa, achando que ele não era tão bom sujeito assim, pelo menos quando bebia.

Uns dois dias depois a dona Margarida, mãe dos Gabrig, ligou brava pra casa da minha avó perguntando que diabos tinha acontecido que o Oscar estava todo dia virando uma caixinha com um pauzinho, que vinha um cheiro ruim dos infernos do quarto dele. A velhinha, calejada, fingia que ficava preocupada, desligava e voltava tranquila pro crochê dela.

Uns quatro dias depois alguém deixou a aliança lá na casa dela, dentro de um vidrinho com álcool.

O passeio pelo tubo digestivo do Oscar tinha deixado a aliança nova em folha, mais brilhosa do que no dia que eu tinha comprado na Joalheria Palácio. Na hora eu pensei até que tinha sido bom, mas depois vi a parte chata: ela nunca mais fez par com a aliança mais escurinha da Bia.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Mas doutor, é enfarte ou infarto?




Há uns tempos vinha sentindo uma pontada nas costas, pensando que era dor na coluna. Na sexta retrasada a dor aumentou e tive que sair direto do dentista pro Procordis. Era um enfarte que pelo visto acabou bem, não fiquei com lesões no coração, fui atendido na hora certa em um bom hospital.


Depois de um cateterismo, instalaram um stent, uma molinha que mantém a artéria desentupida. O nome é bonito, stent, mas na prática é parecido com as gambiarras que eu fazia no carburador da Caravan quando ela tossia na subida da Mantiqueira.


Fiquei um dia no CTI, três dias no quarto e agora estou em casa de licença. Estou me sentindo muito bem, não sei se é porque a dor passou ou porque vou ficar sem trabalhar por um bom tempo. 


Não entendo como as pessoas ficam entediadas sem trabalhar. Não é que eu seja preguiçoso, mas acho que o trabalho atrapalha a gente pensar, rouba muito tempo da nossa vida que já é tão curtinha. 


Então, como estou aqui em casa comendo só papinha, longe dos cigarros ou bebidas de todo tipo e com tempo de sobra, tomei a coragem de escrever e publicar bobagens. Gostei e acho que não vou parar tão cedo.  


Segundo minha cardiologista esotérica, sou um sortudo que não morreu porque ainda tem coisa pra fazer nessa terra. Tomara que seja escrever. Tomara que não seja aqueles exames de próstata, que além de desonrar, deixam o velhinho mais sério do que bode em canoa.

domingo, 12 de junho de 2011

Nazaré, que frio é esse?



Com este friozinho que está fazendo, não resisti e ontem chamei o Fabinho pra dormir comigo. Me abracei nele e, naquele estado que a gente fica pouco antes de pegar no sono, tive a impressão de ter ido parar lá em 1973, no festival de rock de Saquarema.

Chegamos eu e o Zelão, não sei de onde, sem bagagem e sem dinheiro. Só um rádio AM a pilha pra ouvir o programa diário de rock da rádio JB.

Na época, a casinha na praça ainda não existia, era só projeto, com paredes ainda no tijolo, sem teto e sem janelas, com um baita mamoeiro crescendo no quartinho da sala. Pra dormir ainda não dava, mas ao lado, separada por um murinho baixo, tinha a casa sempre fechada da irmã da vó Lili, a tia Xuxuda.

Ela alugava a casa para temporadas, mas era inverno, já estava tarde e não tinha aparecido ninguém. Era desperdício uma casa fechada e nós dois passando frio ali fora.

Pulamos o muro, forçamos a porta da cozinha e invadimos. No início ficamos quietos, de luz apagada, mas chegamos logo à conclusão que o melhor era acender tudo, abrir as janelas. –“Não vamos ficar aqui dentro escondidos senão alguém desconfia, a delegacia é ali pertinho. E já que vamos ficar, vamos fazer uma faxina que tá tudo uma sujeira!”.

Lavamos o banheiro, limpamos a geladeira, ligamos a bomba, enchemos a caixa, tomamos nosso banho e ficamos felizes, sentados na janela, dando a hora pra ir ver Raulzito de chifre vestindo uma malha vermelha, cantando O diabo é o pai do rock.

Mas aí passou um carro com todo mundo olhando pra cara da gente, deu a volta na praça e parou em frente. Era uma família de Barra Mansa que tinha alugado a casa. Confirmaram o endereço, dissemos que era ali mesmo, que já sabíamos que eles estavam para chegar, estávamos ali preparando a casa para recebê-los.

Saímos rapidinho, roubamos uma esteira e uma colcha porque o frio tinha piorado tanto que até pingüim tinha aparecido nadando na praia da Vila.

Depois de muito rock e cachaça no show da Ângela Rorrô e do Raul, fomos para os nossos aposentos na praia, esticamos a esteira e nos preparamos para passar o resto da noite. Pra ninguém roubar, enterrei o radinho bem fundo de modo que não foi possível ser encontrado pela manhã.

No meio da noite, depois que a cachaça passou, comecei a achar mesmo que ia morrer congelado. Na hipotermia total, senti o calorzinho que vinha do Zelão dormindo. Ele, com seus 130 kg parecia uma lareira natural, um leão marinho que barrava a ventania, a maresia e tudo o mais que nos ameaçasse. Fui me aconchegando, me encostando aos poucos, no fim dormi abraçadinho, como ontem com o Fabinho.

Naquela noite, além de salvar minha vida, o Zelão me mostrou como é importante ter um gordinho pra abraçar quando as coisas esfriam de verdade.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A regra é clara


Nasci pra ser craque de futebol, mas dois fatos prejudicaram muito minha carreira.

O primeiro foi mais ou menos um ano depois do Brasil ser bi-campeão do mundo. Estava eu sentado na escada que dava acesso ao enorme pátio de terra do grupo escolar que eu estudava, assistindo o que viria a ser a mais importante partida de futebol de minha vida.

Eu usava óculos, tinha as pernas finas, a bola era muito pesada pra mim. Então, vaga só na torcida, onde eu ficava sozinho numa mistura de medo e vontade, sonhando com o dia que eu crescesse um pouco mais e fosse escalado, mesmo que fosse pra goleiro.

A pelada rolava feroz, os moleques, todos mais velhos que eu,  ficavam com a canela completamente preta de poeira e suor   Onde a bola ia, iam todos e valia qualquer coisa que não tirasse sangue do adversário.

De repente um grito, o beque grandão arrancou a tampa do dedo num caco de vidro e o time viu que não dava mais pra ele.  Todos me olharam, só tinha eu.  -“Moleque entra aí !” Meu coração bateu na garganta, não dava pra amarelar, era a minha chance. Fui tirando o vulcabrás, nem vi onde larguei a meia  e entrei tremendo, sem aquecimento nem instrução do técnico. Pra falar a verdade, nem as regras do jogo eu sabia.

A partida recomeçou e pela posição em campo que eu estava, acho que eu era lateral esquerdo. O ponta direita furou o cruzamento e a pelota veio toda torta, saindo devagar pela linha de fundo. Tomei coragem, dei um pique na direção da bola e antes que ela saísse dei o primeiro chute de minha vida. Um bicudo com toda força, emocionado, botando a bola pra fora, transformando o tiro de meta em escanteio contra meu time.
Orgulhoso pelo que julguei ter sido uma bela intervenção, não entendi a nova interrupção no jogo, desta vez pra eu tomar uns cascudos e ser xingado por todos os companheiros de equipe. Apanhei até do ponta furão do outro time.

Fiquei zanzando em campo mais uns dois minutos, com a orelha quente, torcendo pro jogo não vir mais pro meu lado. Aproveitei quando não tinha ninguém olhando, peguei meu sapato e dei no pé pro vestiário da minha casa. Ninguém notou que um dos times tinha ficado com um jogador a menos. Em casa ainda levei bronca por ter perdido a meia.

A outra coisa que me atrapalhou foi quando descobri que de óculos eu nunca seria um bom cabeceador.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Crochê, drogas e roquenrrôu


   -“Que dia vocês vão embora?” – era a perguntinha padrão da minha avó quando eu desembarcava da Caravan 79 abarrotada, com a Bia, Fabinho, André, Letícia, duas babás, muita fralda de pano suja, toneladas de brinquedos, uma guitarra e um amplificador.

   Celular naquela época só em filme de ficção científica, então a chegada era bruta, sem nenhum aviso. Sexta à tardinha, a velhinha ali, fazendo crochê, descansando os joanetes no banquinho em frente à cadeira de balanço, assistindo alguma precursora da Ana Maria Braga na TV, dava de cara com o bando já na metade da sala, bença vóóó, vamos ficar só até na segunda de manhã!!

   Antes que ela pudesse esboçar qualquer reação, a Dinha já estava na cozinha fazendo um franguinho famoso que não se vê mais nem em gostosura nem em rapidez. Meia hora depois os amigos começavam a aparecer, a sala ficava pequena, o jeito era ocupar a casa inteira.

   Tropeçando perigosamente nos brinquedinhos espalhados e pensando no bem estar das crianças, ela tentava: -“Porque vocês não vão pra fazenda? A Mirtes está viajando, a estrada está ótima, passaram até máquina no Morro do Sabão!”

   A gente ria, queísso vó, o bom é ficar aqui na casinha da senhora! Ela sentia o drama, ia na cozinha, abria aquele armário de aço Fiel, pegava um comprimidinho e, apesar do Black Sabbath trovejando na vitrola, voltava calminha pro crochê.

   E eu, pai de três, me sentia tão neto como quando matava aula pra ficar ali comendo bolo quente e vendo o National Kid dar porrada em preto e branco nos Incas Venusianos.

   Algumas vezes aceitávamos a sugestão dela e partíamos em massa pra fazenda, deixando a velhinha só com as crianças e as babás. Na fazenda não tinha avó, mas tinha um piano e um armário cheio de cachaças. Minha tia trancava o piano e sempre esquecia de deixar a chave, mas isso é conversa pra outro dia. 

PS - Trinta anos depois, observando em minha cama uma das belíssimas colchas que vovó fez, notei que em uma região os pontos eram totalmente fora do padrão. Me lembrou um documentário que vi na BBC, em que aranhas sob efeito de drogas teciam teias bem maluquinhas. E tive a certeza que aquele pedacinho da colcha ela tinha feito sob o efeito do Lorax, que ela tomava toda vez que a gente estava na área.