quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A namoradinha do Brasil



Antes que eu perca minhas leitoras, que estão em maioria, resolvi parar de falar de carros e motos.  Quem gostar de carro que vá ler a Quatro Rodas.  Daqui pra frente só escrevo sobre temas que elas entendam e gostem. E pra recuperar logo a mulherada, vou apelar. Vou começar contando uma história de amor:

Estava em um engarrafamento em Vila Isabel, na 28 de setembro, indo para um lugar totalmente fora da minha rota. Não tenho lembrança de onde estava indo nem o que iria fazer lá. Só sei que estava calor e o carro não tinha ar.

Atordoado, com a cabeça quente no meio daquela zoeira do trânsito, escutei alguém gritando: -“Dioclau!”

Era comigo. Dioclau era meu apelido lá em Barra Mansa na época. Dei uma olhada em volta e não vi quem estava me chamando. Já ia engatar a primeira quando aparece o Marcos Brasil, conterrâneo amigo, companheiro das madrugadas na esquina do Castelinho.

-“Pára aí, Dioclau, há quanto tempo! Vamos tomar uma gelada, deixa esse carro aí!” – e já foi sinalizando pros outros carros igual flanelinha, não me deu nem chance de recusar o convite. Aliás, nem pensei em ir embora, gosto de um bar e de prosear com o Brasil, que sempre foi um poeta.

Entrei no bar, uma varanda bem mais gostosa do que o volante do carro engarrafado e pensei na sorte que eu dei do Brasil ter me enxergado. Cheguei na mesa e ele me apresentou uma moça: -“Dioclau, Carminha, minha namorada. Carminha, Dioclau, amigo meu lá do Barrão!”

A moça era baixinha e simpática, a gente começou a beber e contar caso. Reparei o ar de felicidade do Brasil e pensei, coração de artista é precipitado, se apaixona fácil, eles se conhecem só tem uma semana.

Ficamos horas bebendo e a conversa foi ficando muito boa. No fim, quando o cara do bar começou a jogar água no pé da gente, eu e ela já éramos amigos pra sempre. Saímos do bar os três abraçados e prometemos nos encontrar logo.

Dirigindo pra casa, sem nem me lembrar pra onde estava indo antes do encontro, achei que meu amigo tinha acertado no namoro. A Carminha tinha jeito mesmo de namoradinha de antigamente. Sorte a dele.

Passados uns dois dias, à noite em Niterói, eu tinha acabado de fazer uma prova na faculdade e estava triste com a nota que ia tirar. Resolvi dar uma passada na casa do Moreirinha, um colega de sala e de cachaça, que nem tinha aparecido pra fazer a prova. Costumava ir na casa dele sempre, ele morava sozinho em Icaraí, perto da minha casa, era meu caminho.

O porteiro me conhecia, então subi direto e já fui tocando a campainha. Ninguém atendeu. Eu voltei na portaria e perguntei. O moço garantiu: -“Pode tocar, ele está aí, deve estar dormindo.” Peguei o elevador preocupado, o que será que deu nele, será que está doente?

Na intenção de ajudar, comecei a dar porrada na porta e o barulho atraiu a vizinhança. Eu falei pro síndico, estou com mau presságio, meu amigo não é de matar aula, quanto mais prova! Ele concordou e começou a bater na porta junto comigo.

Daí a pouco a gente escuta o Moreira grunhir lá de dentro que ia abrir. E abriu, com cara de puto, enrolado numa toalha, com o cabelo todo despenteado. Eu nem perguntei nada e fui entrando.

Sentei na sala, acendi a luz, abaixei o som, servi um uísque ruim que ele tinha sempre e fui perguntando, caramba moleque, tá passando mal?  Faz meia hora que eu estou chamando aí na porta, nem na prova você foi!

Ele, no cinismo que eu já conhecia, fez cara de doente e falou que tinha comido alguma coisa estragada, a barriga tinha desandado e não dava nem pra sair de casa. Tava de toalha porque toda hora era banho. Eu vi logo que tinha mistério, não era nada de dor de barriga.

Entre os colegas da faculdade tínhamos um pacto: sacanear ao máximo uns aos outros, não dava pra dar mole. E eu senti ali uma chance, pensei, não vou mais embora, a verdade vai ter que aparecer.

E tome de trocar disco, pegar gelo, encher copo e perguntar bobagem. Deu meia hora e eu inventei que tinha brigado em casa, que ia dormir ali mesmo, a roupa dele servia em mim. Tinha que ver a cara de satisfeito que o homem ficou.

Ele, quando viu que eu não ia embora mesmo, entrou no quarto, demorou um pouco e voltou de roupa. Passou um minutinho, sai alguém rapidinho do quarto pro banheiro no corredor. Aí eu falei: -“Moreira, por que você não falou logo, eu ia embora! Agora faço questão de conhecer a moça!”

E fui ficando até que, sem gracinha mas cheirosa, sai do banheiro a namorada secreta. Ele me apresenta, ela vem chegando pra dar beijinho, olha pra minha cara e não acredita. Eu olho pra ela e também não acredito. Oi, tudo bem? Tudo bem!

Tive que fingir que não conhecia a Carminha, a namorada bacana do Brasil.

Ficamos ali conversando amenidades até que, quando o Moreira foi na cozinha pegar mais gelo eu falei baixinho, no ouvido dela:

-“Porra Carminha, vai gostar de amigo meu assim lá no inferno!”

Reparei depois deste episódio, como meus dois amigos eram parecidos! Nunca chegaram a se conhecer. Um de Barra Mansa, outro de Niterói e muito mais coisa em comum do que minha amizade. E era dessa coisa que a Carminha tinha gostado, pensei mais tarde em casa.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Não disse que ela voltava?




Passados uns quatro meses do desaparecimento da Caravan, eu já estava quase conformado, mas ainda triste quando pensava no que poderia ter acontecido com ela. Esse pessoal de ferro-velho é tudo bandido sem coração, os desalmados esquartejam e vendem aos pedacinhos, que nem fazem com boi em supermercado.

Preferia pensar que ela ainda estava viva, me procurando. Sentia que nossos caminhos se cruzariam de novo. Mesmo que eu trocasse de CPF e ela mudasse de RENAVAM, iríamos nos reconhecer em uma esquina qualquer.

Em um sábado de manhã, tinha ido de moto com a Bia, comprar carne em um açougue mais barato na rua da praia, perto da estação das Barcas. Na chegada, procurando um lugar para deixar a moto, me apoiei na lateral de um carro. Olhando assim com o canto do olho direito, que não é o bom, reparei que era um carro branco, grande...

Meu coração disparou quando abri a viseira embaçada do capacete. Vi que ali, estacionada e mal disfarçada, estava minha velha amiga. A placa era diferente, de Duque de Caxias. Mas eu tinha certeza que era ela. Como um marido que já fez bodas de ouro, eu conhecia cada arranhão e amassado daquela lataria. 

Pedi logo pra Bia descer e ir atrás da polícia. Eu esperaria ali pra não perder mais o carro de vista. Fiquei ali de boca seca e barriga gelada, botando os neurônios pra funcionar, pensando em um plano rápido, infalível e seguro.
Pensei em esvaziar os pneus, mas na hora chegou um moleque cheio de sacolas de compras e começou a guardar tudo no porta-malas. Quando eu falei que queria conversar com o motorista, ele disse que o dono era um PM e foi correndo no mercado chamar o sujeito.

No banco de trás tinha uma velha gorda com cara de cozinheira de história de Joãozinho e Maria. No porta-malas umas panelas enormes de cozinhar bicho grande. Eu pensei nervoso, tenho que ficar esperto, senão viro miúdo na mão dessa velha.

Daí a pouco volta o moleque com um sujeito barrigudo, de bigode, carregando uns pacotes de carne sangrenta e um volume debaixo da camisa que parecia ser uma arma. Parecia não, era um revólver.

Me aproximei tranqüilo, que na hora do perigo gente sem noção arranja coragem. Dei bom dia e perguntei logo onde ele tinha comprado o carro. Ele disse que tinha sido em uma agência lá no Alcântara. Eu disse que infelizmente ele tinha comprado um carro roubado e que minha esposa tinha ido ali chamar a polícia e já estava voltando.

E fui provando que sabia o que estava dizendo: mostrei um parafuso de borboleta, bem diferente do original, que eu tinha instalado embaixo do banco do carona, coisa que deixou o bigodudo convencido que eu era mesmo o dono do carro.

Começou a juntar curioso, já tinha um monte de desocupado levantando o pescoço pra ver que hora eu ia levar o tiro. Mas como tinha muita gente ali ele sugeriu que eu entrasse no carro, que me levaria lá na tal agência. Eu concordei, vamos lá sim, mas eu vou aqui. Pulei na moto e me arranquei pra longe uns cem metros. Por coincidência o meu amigo Mandril, que é campeão de tiro, tinha me dito no dia anterior que a cinqüenta metros ninguém acerta nada com revólver, só na sorte.

Fiquei de longe acelerando a moto e fazendo sinal que tinha sujado pra ele. Ele até tentou arrancar com o carro, mas do mesmo jeito que eu reconheci a Caravan, ela também viu que era eu e engasgou de não andar mais nem um metro.

O jeito foi o bando desistir e começar a tirar as coisas do carro. De longe eu vi o Bigode, a velha e o garoto saírem rapidinho em fila indiana carregando aquela tranqueira de sacolas de compras e panelas. Reparei que a velha mancava, deu até um pouco de pena, mas quem mandou ela andar com bandido?

Fiquei de longe, moto ligada, vigiando se o cara voltava. Passou um tempão e nada. Nem ele, nem a Bia com a polícia.

Nisso, atraído pelo ronco do motor, chega um mendigo e me pede um dinheiro. Eu disse pra ele, vá ali naquele carro branco e tire os cabos de vela que eu lhe dou trinta cruzeiros. Antes que alguém me chame de nome feio, explico que contei a situação pra ele, que o sujeito do bigode podia ser polícia, que estava armado, que podia estar por lá ainda. Em suma, que ele podia morrer de bala.
 Ele pensou nos trinta, calculou quantas doses de caninha da roça, tomou coragem e foi.
Voltou com os quatro cabos e me entregou. Aí que foi o chato, meti a mão no bolso e cadê? Quem anda sempre com dinheiro é a Bia e ela, eu já disse, tinha sumido. Perguntei se ele aceitava cheque. Ele ficou puto, mas disse que aceitava. Perguntei se ele tinha uma caneta.

Com os cabos na mão, parti pra delegacia e relatei o ocorrido. Os policiais disseram que se eu quisesse teria que levar o carro lá, que eles estavam sem viatura e não iriam buscar. Falei, se o problema é transporte eu levo um na garupa da moto e eles olharam pra minha cara de um jeito que eu achei melhor ir saindo.

Voltei pra cena do crime, que àquela hora tinha ficado confusa. A Caravan no meio da rua com as portas abertas, o alerta ligado. A Bia finalmente tinha chegado com outras polícias que investigavam uma mancha vermelha no tapete do carro. Ela já ensaiava um choro de viúva, porque os astutos detetives diziam que o sangue da carne da compra da velha era meu.

Mas nem tudo foi tristeza. Quando fui ligar os cabos de vela, reparei que tinha herdado uma bateria novinha. Entrando no carro, dei de cara com um toca-fitas Roadstar auto-reverse instalado. Liguei o carro com a chave da moto e fui pra delegacia ouvindo uma fita pirata de música gospel que o Bigode, na pressa, tinha largado pra trás.

E pra tirar o carro da delegacia? Foi muito mais difícil do que tomar do ladrão. A perícia pra comprovar que o número de série estava adulterado demorou seis meses. Mais uns seis meses pra resolver os documentos e a remarcação de chassis. Demorou um ano para eu ter de volta minha Caravan, mas pela primeira vez, desde a década de oitenta, totalmente legalizada.

Na época meu pai estava a pé e eu resolvi agradar o velho: dei o carro de presente pra ele. Ele estava de namoro com uma viúva simpática lá de Barra Mansa e eu achei que iria gostar de levar a dona pra dar umas voltas no carrão. Andou uma semana com a Caravan, o suficiente pra não querer mais. Falou que era pra eu pegar de volta logo, que todo dia enguiçava e ele chegava sempre com a mão preta na casa da moça.

Então não sobrou alternativa. Vendi minha amiga por oitocentos cruzados, pagos à vista. Peguei a grana, fui direto pras Casas da Banha e gastei tudo em uma compra de mês. Comi tudo e não pensei mais no assunto.

Só fui me lembrar de novo da velha Caravan quando, um dia destes de engarrafamento, no MP3 com bluetooth da minha Mercedes, ouvi uma musiquinha da Rita Lee e do Moacyr Franco que dizia mais ou menos assim:


“Salsichão, arroz, feijão
Mulçumano e cristão
A Mercedes e o Fuscão
A patroa do patrão
Meu salário e meu tesão
Tudo vira bosta...”





quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Os cães ladram e a Caravan ultrapassa

 
Um dia, em 1979, a Chevrolet juntou uns pedaços de lata, borracha e vidro e fabricou uma Caravan branca.

Pouco tempo depois uma mulher que eu nem conheci comprou essa Caravan na concessionária de Barra Mansa. Ficou tão feliz com a compra que esqueceu de tomar a pílula e engravidou. O marido dela achou melhor que ela não dirigisse naquele estado e deixou o carro pra vender em uma loja de usados, com só duzentos quilômetros rodados.

E foi assim que ela apareceu na minha vida, branca e pouco rodada como uma noiva quase virgem, com pelinhos nos pneus e os bancos ainda durinhos, cobertos com plástico.

No início estranhei o tamanho, mas a cada viagem que fazíamos íamos nos tornando mais íntimos. Éramos mais que carro e motorista. Ela tinha alma, os faróis dela me olhavam com carinho.

Ela me protegia. Antes da lei seca, muitas vezes eu acordava de ressaca na garagem e tinha certeza que quem tinha me dirigido até ali tinha sido ela. Chegava a buzinar no fim da viagem pra me acordar.

Mais madura, com o motor rosnando, o radiador babando e a enorme cauda abanando nas curvas, era quase um cachorro sobre rodas.

E como todo bom cachorro, de vez em quando ela fugia.

Uma vez cismou de não pegar. A gasolina tinha acabado e eu, burro, insisti tanto que a bateria descarregou. E como na época eu só andava de moto, ela ficou ali, abandonada por uns seis meses, em uma rua de Icaraí, embaixo de uma árvore.

Toda vez que eu passava e via a coitadinha ali, empoeirada e forrada de folhas, dava uma parada pra conversar. Me lembrava dos momentos felizes que havíamos vivido e prometia falando ao pé do retrovisor que um dia eu voltaria com um galão cheinho de gasolina aditivada e uma bateria com doze volts só pra ela. Descrente, ela me olhava triste, com os faróis já cheios de catarata.


Cheio de culpa, eu reparava que nem branca ela era mais. Ao contrário do Michael Jackson, ela estava escurecendo com o tempo.

Até que em uma segunda-feira eu tomei vergonha e falei com meu irmão, vamos dar um jeito na Caravan, é muita ingratidão deixar nossa amiga ali naquela condição, daqui a pouco vai ter mendigo dormindo nela. Ele concordou e combinamos que o resgate seria no dia seguinte, ele viria com uma chupeta pra bateria e eu traria o combustível.

Não marcamos hora, mas bem cedo na terça passei no posto, comprei a melhor gasolina que meu dinheiro podia pagar e parti feliz para a missão. Chegando na árvore e me surpreendi: nada da Caravan. No lugar dela uma vaga completamente sem folhas, indicava que ela tinha sido retirada há pouco tempo do abandono.

Pensei, este Fábio é um bom irmão, moleque prestativo, se adiantou e fez tudo sozinho. Despejei a gasolina no tanque da moto e fui embora. A motinha até falhou um pouco na arrancada, aquela gasolina azul era coisa fina demais pra ela.

Passou a semana, sábado de manhã, eu tranqüilo em casa e o telefone toca. Era o Fábio pedindo a Caravan emprestada que o Wilsinho Azamor queria puxar um capim no sítio.

–“Porra Fábio, você tá maluco, a Caravan está com você!”

–“Comigo? Você é que é doido, passei lá na terça às dez e você já tinha levado. Até elogiei você pra Tininha, falei, este Cláudio é um bom irmão, se adiantou e fez tudo sozinho. Ela ainda falou, esse babaca não fez mais que obrigação, o carro é dele!”

Ainda pensamos que podia ter sido o Azamor e ligamos pra ele. Ele disse sério que não sabia de Caravan nenhuma, que nem podia falar muito que o tio dele tinha morrido, estava tratando do enterro. Até que fiquei triste com a morte do tio dele, mas nada parecido com o pesadelo do sumiço da velha amiga. Meio atordoado, cheguei a comentar com o Fábio no caminho da delegacia: -“Será que ela fugiu?”

Na delegacia contamos juntos o caso, cada hora um falava um pedaço da história. Quando o delegado soube que o carro de dois donos tinha desaparecido na terça e a gente só estava dando queixa no sábado à noite, olhou pensativo e perguntou:

-“Na sua casa só tem vocês dois de irmãos? Se tiver mais um, não é melhor perguntar pra ele antes da gente gastar este papel aqui?”

Na saída da delegacia, guardei o boletim de ocorrência com todo o cuidado, como quem guarda a certidão de óbito de um ente querido. Pensei revoltado, tão nova, vinte e três aninhos, tanto Corcel II, tanta Variant velha pra morrer, vai logo ela...

Mas alguma coisa me dizia que minha amiga não tinha sumido para sempre. Criado na fé católica, sentia que ainda nos encontraríamos, mesmo que fosse no céu dos carros, onde não existe mais vistoria, nem quebra-molas, nem guarda pedindo documento.

Ia ser só eu, ela e o asfalto lisinho...


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Na conta do Abreu


Ontem, ainda de férias, saí para jantar com dois amigos do tempo da faculdade. Jantamos três garrafas de vinho, comemos não me lembro o que e recontamos alguns casos, dos muitos que vivemos quando estudávamos na UFF. 

São tantas as passagens que se todos se dispusessem a escrever ia dar pra encher vários livros, seria uma espécie de Bíblia da trapalhada. Mas como nenhum deles quer perder tempo com isso, sobrou só para mim a tentativa de resgatar alguma coisa.

Infelizmente quase tudo que aconteceu nesta época só consigo me lembrar quando bebo. E como minha cardiologista me proibiu beber, alguns casos só serão conhecidos quando eu estiver transmitindo do além para médiuns da segunda divisão.

Mas com a memória de quem apanha, deste episódio me lembro nos detalhes.

Estávamos sóbrios, vínhamos da aula da noite, eu, o Tonzé e o Abreu, os três com aquela fome que só se tem aos vinte anos. Resolvemos fazer um lanche ali na padaria Colonial, que servia todo tipo de salgado desses que a gente também só consegue digerir quando é jovem.

O detalhe é que o dinheiro que a gente andava era inversamente proporcional ao tamanho do estômago. Juntando o que os três tinham no bolso não dava nem para o couvert. Então, inspirados naqueles filmes de assalto a banco, viemos na caravan bolando um plano que tinha tudo pra dar certo, não fosse a falta de espírito de equipe demonstrada pelo Abreu.

Estacionamos o carro um pouco antes, pro português nem pensar que a gente estava de má intenção. Era tarde, a padaria estava vazia. Encostamos no balcão e pedimos três coxinhas e três cocas de garrafa. Depois três risoles de camarão e mais três cocas. O Tonzé que era o mais guloso ainda pediu uma salsicha recheada de saideira.

Achamos que já que era pra não pagar, tanto fazia fugir devendo dez ou cem. Só não atinamos que quanto mais comíamos mais lerdos ficávamos para correr. Além disso, à medida que a despesa ia aumentando, o português ia prestando mais atenção no trio.

O plano não deixava claro quem seria o motorista da fuga. O mais lógico era que fosse eu, tinha mais prática e era o dono do carro. Mas aí chegou o cara de pau do Abreu e disse que gostaria de dirigir. Quem vê a cara dele, com aquele sorriso cretino com os dentes da frente separados, pensa que o sujeito é um santo. Eu desconfiei, mas já meio enjoado de tanta fritura engordurada, passei a chave pra ele.

Nos minutos que sucederam a saída do Abreu o ambiente ficou tenso. O plano era ele dar uma parada, já com a porta aberta, a gente pulava dentro do carro e se mandava cantando pneu pela Moreira César que na época tinha pouco movimento.

Tudo aconteceu muito rápido. O Abreu passou com a caravan de farol apagado e vidros fechados a mais ou menos uns oitenta por hora e nem olhou pra dentro da padaria. O Tonzé estava mais perto da porta imediatamente deu um pulo e sumiu na escuridão, correndo pela calçada. Eu, mais vacilão, fiquei sozinho, encostado no balcão, o português me olhando, eu olhando pro português.

Eu compensei a lentidão com sangue frio. Tranquilamente meti a mão no bolso e dei a entender que a despesa ficara por minha conta. Reparei que tinha um queijo na parte de baixo do balcão de vidro e perguntei pro portuga:-“Quanto custa o queijo?”

No que ele abaixou pra olhar eu segui a tática do Tonzé e fugi correndo o máximo que podia pela calçada. Na correria não enxerguei um frade de pedra na minha frente e bati sem frear. Voei uns dez metros, me ralei todo nas pedras da calçada. Ardeu, mas o que mais me incomodou foi a pancada do frade na região pubiana.

Levantei correndo, dobrei a Otávio Carneiro e sumi que nem maria-farinha na areia da praia de Icaraí. Me deitei perto da água e fiquei olhando na direção da rua, vigiando se o português vinha atrás do prejuízo. Quando olhei pro lado, vi o Tonzé na mesma posição que eu, com aquele topetão camuflado de areia.

Ficamos ali um bom tempo, o suficiente para a azia começar a incomodar. Enquanto isso analisamos tudo que tinha dado errado e juramos que nunca mais a gente iria se envolver com o Abreu. Só saímos quando vimos o sacana passar tranquilão, dirigindo com o braço pra fora, furando o sinal vermelho da praia, que a caravan não era dele mesmo.









sábado, 6 de agosto de 2011

A cinqüentinha da Raquel





Fiquei hipnotizado quando, aos sete anos, vi pela primeira vez uma bicicleta movida a motor. Era só um motorzinho dois tempos fumacento, mas foi ali que eu fiquei sabendo que seria um motociclista quando crescesse.

Aos treze anos despencava ladeira abaixo com minha bicicleta monareta equipada com um pedacinho de plástico preso no garfo, roçando os raios da roda da frente. Aquele barulho tec-tec-tec que o plástico fazia eu transformava no ronco de um motor potente que só dava defeito quando a descida acabava.

Aos quinze roubei uma lambreta vermelha e só parei quando a gasolina acabou.

Conto isso para mostrar minha paixão, desde criança, por motocicletas e para justificar minhas atitudes pouco louváveis no caso que passo a narrar.

Lá em Santa Rita do Sapucaí, um de meus colegas de república, o Sérgio Bocão, namorava uma menina feia demais, a Raquel. Tudo bem que mulher lá era coisa rara, mas eu achava que o Boca tinha passado da conta. Ia acabar queimando o filme da república toda.

Na época o bullying não só era permitido, como recomendado. E eu zoava sem culpa toda vez que via o moleque andando de mãozinha dada com ela pela praça.

A vida ia passando, o casal namorando e eu perturbando. Nada mudava, até que um dia, no fim da tarde, tudo mudou: da janela eu vejo a Raquel e o Boca chegarem, montados em uma moto.

Era uma hondinha linda, cinqüenta cilindradas, azul, tanque com laterais cromadas, farolzinho aceso, meu coração deu até uma meia parada. Tinha sido presente do pai dela. A Raquel, quem diria, agora vinha com uma moto de brinde...

A primeira coisa que tratei de reparar foi que a Raquelzinha não era tão feia assim, na verdade tinha era uma beleza exótica. Era só emagrecer uns bons quilinhos e dar um jeito no cabelo. Bom, o cabelo não tinha jeito, mas quando ela estava de capacete dava uma disfarçada boa.

Aos poucos fui entendendo que o motivo que me levara a implicar tanto com a vida do casal era o sentimento que eu sempre tivera pela Raquel e que não iria dar para o Bocão continuar ali empatando aquele amor sincero.

Planejei minha campanha. Fiquei mais cortês, passei a tomar banho, escovar dentes, por fim tomei coragem e me declarei. Ela, cansada de carregar o Boca na garupa, precisada de um motoboy, ficou de pensar com carinho.

E pensou mesmo, antes da revisão dos mil quilômetros da motinha eu já era o novo namorado da Raquel. E quem pilotava para o casal? Claro que era eu.

Aí virou rotina, todo dia lá pelas sete da noite eu esperava aquele bi-bi pontual anunciando que era hora de andar na moto. Ela pulava pra garupa e lá ia eu, feliz da vida, puxando os quase noventa quilos da dona com os cinco hp da hondinha.

Um dia tive uma idéia que iria facilitar muito a vida dela, que não gostava muito de pilotar. Eu ficaria com a moto e todo dia iria buscá-la para passear na hora que ela marcasse. Propus até dar uma forcinha na gasolina, se ela topasse.

Ela gostou da idéia mas não aceitou que eu pagasse a gasolina. Só recomendou que eu não carregasse mulher nenhuma na moto e é claro que eu concordei. A partir daí passei à parte do plano em que eu passearia com ela só nas segundas, quartas e sextas porque estava cheio de nota baixa, tinha que estudar mais.

E assim, nas terças e quintas a hondinha era só minha e o sul de Minas ficou pequeno pra nós dois. Eu ia pra Pouso Alegre comprar cigarrinho a varejo, ia pra Itajubá tomar uma coca e toda hora eu estava em Piranguinho comendo pé-de-moleque.

O chato era que na escola tinha um bando de invejosos, todos querendo uma moto igual à minha. Tinha um mala lá, um tal de Joinha de Volta Redonda, que toda vez que me via ficava perguntando quantas marchas tinha, quanto que corria, se um dia eu deixava ele dar uma volta. Quando eu via o cara na calçada, passava voado. Pelo retrovisor eu via que ele virava até o pescoço pra me filmar com aquele olho comprido.

Com o tempo passei a achar que a moto era minha e comecei a deixar uns furos com a Raquel. Às vezes chegava atrasado, tinha dia que eu nem aparecia. No fim era tanta impunidade que eu já nem ia mais, achando que ela só servia para atrapalhar a minha vida de aventuras sobre duas rodas.

Mas se com a menina eu vacilava, com a hondinha eu era pura atenção. Calibrava os pneus na risca, checava o nível do óleo, engraxava sempre a corrente.

Foi indo assim, só felicidade, até que um dia a Raquel falou que era pra eu ir lá na casa dela e levar a moto. Eu ainda pensei, deve ser pra emplacar, passou da hora, eu direto com essa moto sem placa na estrada.

Para minha surpresa não era pra emplacar. Era o confisco da minha motocicleta e no mesmo lance o desmanche do meu namoro. Eu ainda argumentei, chamei pra passear na moto e ela não quis. Aí apelei e pedi com voz embargada: -“Então deixa eu dar mais uma voltinha, pra me despedir?”

Ela jogou a chave dentro do sutiã GG e não deixou.

Nem sei como cheguei em casa, tive crise de abstinência, febrão de quarenta graus por duas semanas. Era dependência química, o corpo inteiro doía, foi sofrimento de novela mexicana. Só depois de uns quinze dias fui reaprendendo a andar a pé e aos poucos voltei a freqüentar as aulas.

Um mês depois, mais conformado, sofri um duro golpe que me levou a uma recaída quase fatal. Vi passar na minha frente a minha moto com a Raquelzona afundada na garupa e o Joinha, aquele filho da puta, buzinando sem necessidade, só pra me tirar do sério.



quarta-feira, 29 de junho de 2011

Olho por olho, disco por dente


Hoje é só baixar mp3, botar no pendrive e sair com a coleção inteira dos Stones no bolso, mas em 1972 a vida era dura pra quem gostava de rock em Santa Rita do Sapucaí.

Pode parecer mentira, mas a internet ainda não existia. Para ouvir música tinha que comprar disco de vinil, gravar fita cassete ou ouvir rádio. Era impossível achar um disco que prestasse na lojinha do seu Waldomiro e o único programa de rádio que tocava rock era na hora da aula.
  
O jeito era ir juntando as mesadas e partir em expedição pro Rio de Janeiro, tentar a sorte na Billboard ou na Modern Sound. Ficávamos babando, percorrendo as pilhas dos vinis importados, olhando os encartes bonitos e pedindo para ouvir algumas faixas. Passávamos o dia inteiro dentro das duas lojas e no fim saíamos com as músicas bem gravadas na memória. Às vezes alguém mais ousado levava um disco sem pagar, não sei como, a gente era magrinho, um LP era grande pra ser escondido.

E assim, enquanto o rock dos anos setenta brotava como uma cachoeira, nossas coleções cresciam como uma goteira, dois em dois disquinhos por ano. Fazia minhas contas e via que naquele ritmo eu só teria vinte LPs depois das minhas bodas de prata. Alguma coisa tinha que ser feita pra acelerar minhas aquisições. 

E a coisa foi feita da forma que eu menos esperava, por causa de uma dor de dente. Escolhi um bom dentista, que examinou a situação e fez o orçamento. Tinha que tratar canal, ia ficar caro. Mandei o orçamento pra minha mãe e disse que era urgente. Urgente naquela época era diferente, o orçamento ia pelo correio e o dinheiro eu nem sei mais como vinha. Mas não tinha caixa rápido nem cartão de débito.

Enquanto o dinheiro do dentista não chegava, fui pesquisando e descobri que na cidade tinha um outro profissional mais em conta. Tinha sotaque de alemão, era prático, não tinha diploma e atendia em uma garagem, em uma cadeira de barbeiro. Mas o preço que ele cobrava era justo. Fiz as contas, com a diferença dos valores dos orçamentos dava pra comprar quase dez LPs de uma tacada só.

Nem pensei, quando o dinheiro chegou eu resolvi primeiro o mais importante: comprei logo os discos. Naquela época já tinha inflação, se demorasse com o dinheiro na mão dançava. Tive juízo, comprei só oito, tinha que sobrar uma graninha para um pacote de cigarros e para resolver o dente, que nem doía tanto mais.

Uma semana depois, com a dor de volta e cansado de ouvir os discos novos, fui consultar o prático que resolveu o problema rapidinho, da única forma que ele sabia. Deu um algodão com uma mistura de melhoral e LSD para eu cheirar e, com um alicate de borracheiro de caminhão, arrancou o meu dente. Na saída, sob o efeito da droga eu ainda pensei: -“Que bom negócio eu fiz, ainda tenho mais de trinta dentes pra trocar por disco!”

Fiquei de voltar ao consultório do prático para terminar o tratamento, tirar os pontos e fazer o pagamento. Mas logo depois, para minha sorte, alguém denunciou o sujeito, disseram que era um nazista foragido e quando eu voltei lá só tinha a garagem.

Hoje, quando tento mastigar uma coisa mais dura, vejo que foi overdose de burrice. Como Jimi Hendrix e Janis Joplin, meu molar superior direito foi um mártir, mais uma vítima daqueles anos perigosos do rock no vinil.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Ora que melhora


O barulho da cidade me incomoda muito. Sempre sonhei viver no meio do mato, sem vizinhos, ouvindo só passarinho e vento. Então, na primeira oportunidade que tive, contrariando a família, comprei um terreno na beirada mais isolada do mundo.

O lugar era perfeito, cercado de árvores, com uma reserva florestal atrás. Só um vizinho, um criador de orquídeas muito educado, aparecia por lá de mês em mês para ver as flores e bater um papo na cerca tomando uma cachacinha comigo.

Um dia ele se cansou da estrada ruim e pôs o sítio à venda. Com a saída dele as orquídeas ficaram abandonadas, se proliferaram sem controle e o local ficou infestado de perfume e beija-flores. Se melhorasse estragava mesmo.

Um dia soube que o sítio tinha sido vendido e fiquei torcendo pro comprador não aparecer tão cedo. Levou um bom tempo, mas apareceu. Era uma velha, a mãe dela centenária e um cachorro grande que parecia o Cérbero, aquele cão de três cabeças que tomava conta da porteira do inferno.

No primeiro contato que eu tive com a velha senti um calafrio. Tive a certeza dela ter causado algum embaraço pro demônio e ele ter botado o bando todo pra correr das profundezas.

E daí pra frente nunca mais tive sossego. Ela construiu a casa do cachorro o mais perto que podia da janela do meu quarto, gritava o dia inteiro com a mãe, a mãe berrava com o cachorro, o cachorro latia sem parar. Eu reclamava e ela dava gargalhada. Todo dia eu pensava em assassinato, mas na mão não ia dar. Eram duas velhas possuídas, tinha que ser coisa pensada, com arma boa, senão quem morria era eu.

Um dia, já desorientado e descrente de uma solução, pensei: -“Estaca no coração! Vou procurar um toco grosso e afiar bem afiadinho!” – E saí andando sem rumo pela reserva atrás de um galho no jeito. Fui me embrenhando cada vez mais pra dentro da mata, até que lá no fundo de um grotão, sentado em uma pedra, me aparece um apache velho, fumando um cachimbo esquisito.

Ele disse -“Rôu!” e me ofereceu o cachimbo. Eu aceitei e na terceira tragada eu já estava mais calmo que o índio. Perguntou o motivo de minha aflição e eu contei o caso todo. Quando descrevi a velha ele fez uma careta e me pediu o cachimbo de volta. Deu uma puxada forte, se virou e me aconselhou: -“Não reaja, não faça nada a não ser rezar. Entregue o problema nas mãos de Tupã.” E eu disse: -“Sim, mas me passe o cachimbo de volta”.

Na quinta tragada, olhei pro lado e cadê o apache? Como apareceu, sumiu, levando a pedra e o cachimbo. No lugar dele ficou só uma fogueirinha de gravetos, que eu apaguei pro fogo não lamber o mato.

E eu, que nunca tive fé, segui o conselho do pajé e a partir daquele dia comecei a rezar. O cachorro latia, eu rezava. A velha berrava, eu rezava mais.

Parece que funcionou, Tupã sentiu meu drama e me acudiu. Com o tempo, o cachorro foi ficando quieto, parando de latir, até que um dia sem mais nem menos parou de respirar.
A mãe da velha também foi dando tanta alteração que acabou internada em um asilo em São Gonçalo. 

E a velha, que era dura na queda, murchou. Foi ficando muda e um dia desses vi um médico sair da casa dela. Pela expressão do doutor conversando com o caseiro deduzi que não havia mais o que fazer.

Parei de rezar antes que a casa dela pegasse fogo. E apesar de não entender direito o que aquele apache estava fazendo em Maricá, me converti. Tupã é fiel.