quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Os cães ladram e a Caravan ultrapassa

 
Um dia, em 1979, a Chevrolet juntou uns pedaços de lata, borracha e vidro e fabricou uma Caravan branca.

Pouco tempo depois uma mulher que eu nem conheci comprou essa Caravan na concessionária de Barra Mansa. Ficou tão feliz com a compra que esqueceu de tomar a pílula e engravidou. O marido dela achou melhor que ela não dirigisse naquele estado e deixou o carro pra vender em uma loja de usados, com só duzentos quilômetros rodados.

E foi assim que ela apareceu na minha vida, branca e pouco rodada como uma noiva quase virgem, com pelinhos nos pneus e os bancos ainda durinhos, cobertos com plástico.

No início estranhei o tamanho, mas a cada viagem que fazíamos íamos nos tornando mais íntimos. Éramos mais que carro e motorista. Ela tinha alma, os faróis dela me olhavam com carinho.

Ela me protegia. Antes da lei seca, muitas vezes eu acordava de ressaca na garagem e tinha certeza que quem tinha me dirigido até ali tinha sido ela. Chegava a buzinar no fim da viagem pra me acordar.

Mais madura, com o motor rosnando, o radiador babando e a enorme cauda abanando nas curvas, era quase um cachorro sobre rodas.

E como todo bom cachorro, de vez em quando ela fugia.

Uma vez cismou de não pegar. A gasolina tinha acabado e eu, burro, insisti tanto que a bateria descarregou. E como na época eu só andava de moto, ela ficou ali, abandonada por uns seis meses, em uma rua de Icaraí, embaixo de uma árvore.

Toda vez que eu passava e via a coitadinha ali, empoeirada e forrada de folhas, dava uma parada pra conversar. Me lembrava dos momentos felizes que havíamos vivido e prometia falando ao pé do retrovisor que um dia eu voltaria com um galão cheinho de gasolina aditivada e uma bateria com doze volts só pra ela. Descrente, ela me olhava triste, com os faróis já cheios de catarata.


Cheio de culpa, eu reparava que nem branca ela era mais. Ao contrário do Michael Jackson, ela estava escurecendo com o tempo.

Até que em uma segunda-feira eu tomei vergonha e falei com meu irmão, vamos dar um jeito na Caravan, é muita ingratidão deixar nossa amiga ali naquela condição, daqui a pouco vai ter mendigo dormindo nela. Ele concordou e combinamos que o resgate seria no dia seguinte, ele viria com uma chupeta pra bateria e eu traria o combustível.

Não marcamos hora, mas bem cedo na terça passei no posto, comprei a melhor gasolina que meu dinheiro podia pagar e parti feliz para a missão. Chegando na árvore e me surpreendi: nada da Caravan. No lugar dela uma vaga completamente sem folhas, indicava que ela tinha sido retirada há pouco tempo do abandono.

Pensei, este Fábio é um bom irmão, moleque prestativo, se adiantou e fez tudo sozinho. Despejei a gasolina no tanque da moto e fui embora. A motinha até falhou um pouco na arrancada, aquela gasolina azul era coisa fina demais pra ela.

Passou a semana, sábado de manhã, eu tranqüilo em casa e o telefone toca. Era o Fábio pedindo a Caravan emprestada que o Wilsinho Azamor queria puxar um capim no sítio.

–“Porra Fábio, você tá maluco, a Caravan está com você!”

–“Comigo? Você é que é doido, passei lá na terça às dez e você já tinha levado. Até elogiei você pra Tininha, falei, este Cláudio é um bom irmão, se adiantou e fez tudo sozinho. Ela ainda falou, esse babaca não fez mais que obrigação, o carro é dele!”

Ainda pensamos que podia ter sido o Azamor e ligamos pra ele. Ele disse sério que não sabia de Caravan nenhuma, que nem podia falar muito que o tio dele tinha morrido, estava tratando do enterro. Até que fiquei triste com a morte do tio dele, mas nada parecido com o pesadelo do sumiço da velha amiga. Meio atordoado, cheguei a comentar com o Fábio no caminho da delegacia: -“Será que ela fugiu?”

Na delegacia contamos juntos o caso, cada hora um falava um pedaço da história. Quando o delegado soube que o carro de dois donos tinha desaparecido na terça e a gente só estava dando queixa no sábado à noite, olhou pensativo e perguntou:

-“Na sua casa só tem vocês dois de irmãos? Se tiver mais um, não é melhor perguntar pra ele antes da gente gastar este papel aqui?”

Na saída da delegacia, guardei o boletim de ocorrência com todo o cuidado, como quem guarda a certidão de óbito de um ente querido. Pensei revoltado, tão nova, vinte e três aninhos, tanto Corcel II, tanta Variant velha pra morrer, vai logo ela...

Mas alguma coisa me dizia que minha amiga não tinha sumido para sempre. Criado na fé católica, sentia que ainda nos encontraríamos, mesmo que fosse no céu dos carros, onde não existe mais vistoria, nem quebra-molas, nem guarda pedindo documento.

Ia ser só eu, ela e o asfalto lisinho...


14 comentários:

  1. ai, meu Deus, e aí, como termina a história? Eu não lembro...

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  2. Claro que não é o fim. Ainda tem coisa pra contar, eu lembro...

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  3. HUhuahauahuahuahua bom demais! É muito bom quando você chacoalha essa cabeça e arranca uma pérola Cláudio! Manda mais!

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  4. Estás me chamando de cabeça de ostra, Fábio de Castro?

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  5. Eu me lembro do próximo capítulo, assim como a Bianca. Agora, fala sério: paixão por moto, paixão pela Caravan, pelo Fusca amarelo...você tinha que trabalhar onde trabalha, né mesmo?

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  6. Brasileiro é apaixonado por carro, não viu na propaganda, Mariza?

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  7. Po Cadio,

    Gostei mais ou menos da estoria... so num gostei mesmo da parte que "o Wilsinho Azamor queria puxar um capim no sítio."
    Eu nunca fui no sitio desse Azenor.
    Abracos,
    Capim

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  8. Ah, tambem nao gosto de ser puxado nem empurrado.
    Ainda mais em sitios e fazendas, onde capim eh alimento de animais (se vc entende o que quero dizer).
    Bota mais causos ai no blog, falou?
    abracos,
    Capim

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  9. Adorei o texto! Ri bastante. Continue!

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  10. Lucia Helena Pereira Corsini21 de agosto de 2011 às 21:33

    Adorei tb,mas qual o proximo capitulo da caravan???

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  11. Lúcia Helena, seu pai também teve uma, só que era bege.

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  12. Agora fiquei encasquetado, será que a fábula da onça e do bode foi inspirada nessa história? e aí a galera quer saber, quem era o bode e quem era a onça.

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