terça-feira, 21 de junho de 2011

Ora que melhora


O barulho da cidade me incomoda muito. Sempre sonhei viver no meio do mato, sem vizinhos, ouvindo só passarinho e vento. Então, na primeira oportunidade que tive, contrariando a família, comprei um terreno na beirada mais isolada do mundo.

O lugar era perfeito, cercado de árvores, com uma reserva florestal atrás. Só um vizinho, um criador de orquídeas muito educado, aparecia por lá de mês em mês para ver as flores e bater um papo na cerca tomando uma cachacinha comigo.

Um dia ele se cansou da estrada ruim e pôs o sítio à venda. Com a saída dele as orquídeas ficaram abandonadas, se proliferaram sem controle e o local ficou infestado de perfume e beija-flores. Se melhorasse estragava mesmo.

Um dia soube que o sítio tinha sido vendido e fiquei torcendo pro comprador não aparecer tão cedo. Levou um bom tempo, mas apareceu. Era uma velha, a mãe dela centenária e um cachorro grande que parecia o Cérbero, aquele cão de três cabeças que tomava conta da porteira do inferno.

No primeiro contato que eu tive com a velha senti um calafrio. Tive a certeza dela ter causado algum embaraço pro demônio e ele ter botado o bando todo pra correr das profundezas.

E daí pra frente nunca mais tive sossego. Ela construiu a casa do cachorro o mais perto que podia da janela do meu quarto, gritava o dia inteiro com a mãe, a mãe berrava com o cachorro, o cachorro latia sem parar. Eu reclamava e ela dava gargalhada. Todo dia eu pensava em assassinato, mas na mão não ia dar. Eram duas velhas possuídas, tinha que ser coisa pensada, com arma boa, senão quem morria era eu.

Um dia, já desorientado e descrente de uma solução, pensei: -“Estaca no coração! Vou procurar um toco grosso e afiar bem afiadinho!” – E saí andando sem rumo pela reserva atrás de um galho no jeito. Fui me embrenhando cada vez mais pra dentro da mata, até que lá no fundo de um grotão, sentado em uma pedra, me aparece um apache velho, fumando um cachimbo esquisito.

Ele disse -“Rôu!” e me ofereceu o cachimbo. Eu aceitei e na terceira tragada eu já estava mais calmo que o índio. Perguntou o motivo de minha aflição e eu contei o caso todo. Quando descrevi a velha ele fez uma careta e me pediu o cachimbo de volta. Deu uma puxada forte, se virou e me aconselhou: -“Não reaja, não faça nada a não ser rezar. Entregue o problema nas mãos de Tupã.” E eu disse: -“Sim, mas me passe o cachimbo de volta”.

Na quinta tragada, olhei pro lado e cadê o apache? Como apareceu, sumiu, levando a pedra e o cachimbo. No lugar dele ficou só uma fogueirinha de gravetos, que eu apaguei pro fogo não lamber o mato.

E eu, que nunca tive fé, segui o conselho do pajé e a partir daquele dia comecei a rezar. O cachorro latia, eu rezava. A velha berrava, eu rezava mais.

Parece que funcionou, Tupã sentiu meu drama e me acudiu. Com o tempo, o cachorro foi ficando quieto, parando de latir, até que um dia sem mais nem menos parou de respirar.
A mãe da velha também foi dando tanta alteração que acabou internada em um asilo em São Gonçalo. 

E a velha, que era dura na queda, murchou. Foi ficando muda e um dia desses vi um médico sair da casa dela. Pela expressão do doutor conversando com o caseiro deduzi que não havia mais o que fazer.

Parei de rezar antes que a casa dela pegasse fogo. E apesar de não entender direito o que aquele apache estava fazendo em Maricá, me converti. Tupã é fiel.

10 comentários:

  1. Esta mistura de realidade com seus "devaneios" está bem interessante! Fico feliz, você é um engenheiro que sabe escrever!!!Milagres acontecem, né? rsrsrsr

    Ao constatar a capacidade que cada um de nós (irmãos) tem para escrever razoavelmente bem agradeço à "chatice" do pai, que não nos corrigia quando errávamos alguma palavra e nos fazia pensar na forma correta! Repito a fórmula com meus filhotes!

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  2. Não são devaneios. É tudo baseado em fatos. Não se esqueça de nossa mãe, que escreve muito bem e tem até um blog. Gostaria de repetir a fórmula de nosso pai, mas o médico não deixa mais.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Tupã é sinistro!... E pq os outros filhos e netos tb não aderem à moda de blogar? O livro ficaria mais interessante!!

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  5. “Rôu!” Perfeito! HUahuahuahua! Mt bom!

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  6. Sensacional!
    Ainda bem que "O cachorro foi ficando quieto, parando de latir, até que um dia sem mais nem menos parou de respirar." senão iria fazer uma corrente... hehehe

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  7. Como devaneio? Claro que aconteceu de alguma forma!

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  8. Cláudio, que tal revivermos o camarada Al? Afinal de contas, com HUMDEMBERG 1 + 1 DÁ dois (2). Márcio Ramos (Joe). Sensacional a história acima!

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  9. Joe! Para reviver o Comissário Al teria que passar uns dias com o Alvarenga. Você tem certeza que é uma boa idéia?

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  10. Realmente, seria uma experiência que talvez deixasse sequelas irreparáveis, mas acho que valeria a pena, pois seria uma experiência que ficaria para a posteridade e não perdida com os anos, se bem que existem controvérsias quanto à isso!
    Cláudio, falei com a Marga ontem, e ela me falou desse blog, que eu nem sei o que é, pois estou usando ó da minha filha Natália, mas achei sensacional e do nada me veio na cabeça o Comissário Al, que é pura criatividade sua!
    Um grande abraço, Márcio (Joe).
    Beijos

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